Célio Zangalli Neto

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Terra sem ninguém

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“Este conto aborda temas como o desaparecimento da humanidade, inteligência artificial e questões éticas, incluindo eventos potencialmente perturbadores. Indicado para maiores de 16 anos.”

Queimou imergindo na atmosfera, depois a nave levitava sobre a cidade. Parou ainda flutuando próxima a um edifício, a tampa retangular se abriu.

Uma mulher de trinta anos, trajada com roupas espaciais, apareceu. Retirou o capacete, respirou fundo, enchendo os pulmões de ar. Com os olhos fechados, sentiu o cheiro peculiar da terra enquanto seus cabelos esvoaçavam no vento.

— O que está fazendo? — perguntou o homem vestido com roupas semelhantes às dela, mas com o capacete em seu devido lugar e um objeto retangular nas mãos.

Ela abriu os olhos na direção dele com desdenho.

— Estou aproveitando o único ar natural do universo que posso respirar. Se fosse você, faria o mesmo, talvez seja a oportunidade de nossas vidas.

— Deixa disso, eu tenho mais o que fazer — resmungou o homem, olhando para a prancha nas mãos.

Uma última respirada antes de devolver o capacete ao lugar.

— Vamos? — perguntou a mulher, andando na direção dos veículos.

— Nem mais um passo, Dr.ᵃ Harper. Precisamos fazer o checklist — disse o homem de forma impositiva.

— Eu já decorei, se quiser, posso falar de trás para frente.

— Tudo bem — disse ele tirando algum equipamento do bolso —, registro de atividade, Dr.ᵃ Harper Davis negligencia o checklist…

— Está bem, está bem, Dr Caleb Phillip. Vamos iniciar o checklist — disse Harper impaciente.

Out. 2188, o planeta Terra deixou de responder às mensagens.

Nov. 2188, enviamos a primeira equipe de reconhecimento. Dados conflitantes, nenhum sinal de guerra, mas não encontramos ninguém no planeta.

Dez. 2188, encontramos as pessoas enterradas.

Jan. 2189, a primeira equipe para de responder.

Fev. 2189, descobrimos que as pessoas da primeira equipe também foram enterradas.

— O objetivo é achar pistas do ocorrido. O Dr. Caleb Phillip vai para a universidade onde ocorriam debates sobre a criação de androides e IA entre Ethan Blake e Julian Merrick. A Dr.ᵃ Harper Davis vai para a casa do Julian Merrick — leu Phillip em sua prancha.

Ao terminar, Phillip olhava para o uniforme de Harper. Com a barba cheia de fios grisalhos e olhos atentos, ele verificava cada detalhe. Ela não sabia como reagir, sem entender, se virava e conferia se algo estava errado.

— O que foi? — perguntou ela.

— Esse traje espacial fica justinho no seu corpo.

— E?

— Você é muito gostosa.

Harper mostrou a língua para ele. Pegou um veículo de exploração que levitava um metro do solo e partiu.

“Mantenha o comunicador ligado” disse Phillip pelo rádio.

“Vou pensar no seu caso”

Andando pelas ruas, Harper tinha vontade de entrar nas casas e verificar se estavam vazias. Era como se o tempo parasse e, em um toque de mágica, as pessoas sumissem. Sem sinal de agressão ou arrombamento, as pessoas desapareceram.

Expedições passadas mostraram que o dia 21 de outubro foi o último dia de humanidade. Desde então, não existem registros de nada na terra, nenhuma comunicação interna ou externa.

Parada no sinal vermelho, ela viu um humanoide fazendo manutenção em um jardim. Quando a máquina viu a doutora, ela acenou. Além desse robô, outros faziam trabalhos braçais, como a limpeza e manutenções. O mundo não permanecia apenas desabitado, além de vazio, estava organizado e limpo de forma metódica. Isso incluía o funcionamento das luzes dos semáforos.

Sinal verde, hora de seguir.

“Oi, está na escuta?” perguntou Phillip.

“Claro, encontrou algo?” respondeu Harper.

“Registros de um debate entre Ethan Blake e Julian Merrick no dia 10 de outubro de 2188. Eles começaram falando sobre uma sequência de ataques dos equipamentos do Julian às máquinas que consideravam inferiores. Ethan deixou claro o repúdio em simular a mente humana em androides.”

Harper seguia o caminho para a casa de Julian, a residência ficava fora da cidade, próximo à rodovia.

“Tem registros dos ataques?” perguntou Harper.

“Sim, os equipamentos do Julian atacavam e destruíam os robôs de Ethan, eles diziam serem superiores e deviam substituí-los. Ethan respondia a esses ataques dizendo que simular a mentalidade humana em uma máquina criaria situações como essa. De preconceitos à violência, disse também que era questão de tempo até que isso se voltasse contra os humanos.” disse Phillip.

“Teve resposta?”

“Sim, Julian respondeu que se as máquinas de Ethan simulassem o mínimo de humanidade, a criança não teria um final trágico no porto. Ele não diz, mas essa resposta se refere a um menino que foi esmagado. Eu te mandaria as imagens, mas acho que você não precisa ver essa atrocidade. O menino caminhava sozinho e um dos robôs do Ethan esmagou-o com um contêiner.” disse Phillip.

“Eu não quero ver essa cena” disse Harper.

Seguindo pela estrada, Harper não entendia o porquê de Julian morar tão longe. Quando chegou nas proximidades da casa, pensava no que procurar. A maneira mais fácil de não encontrar nada é não saber o que está procurando.

Sem dificuldade, ela entrou no jardim da casa, era como um sítio afastado de qualquer vizinho. Harper pensava na vida de Julian, criar robôs para melhorar a vida de pessoas que não queria por perto.

“Phillip, você sabe algo que eu deveria saber sobre Julian?” perguntou Harper.

“Excêntrico, antissocial, alguns diziam ser meio maluco, por quê?”

“Agora são 9:32, estou de frente a um relógio solar no jardim dele”

“Esqueci de mencionar, ele colecionava velharias. Acredito que você encontrará de tudo na casa dele”.

Além do relógio, outros objetos chamavam a atenção. Os trilhos de um trem, do tamanho de um sapato grande, cercavam o jardim. Conferindo a locomotiva, Harper alimentou a fornalha com lascas de madeira e acendeu tudo com um fósforo que a máquina carregava, esperou até a ver movimentar-se.

De fato, era um brinquedo gracioso, mas inútil em todos os sentidos da palavra. Julian morava sozinho e não tinha filhos, imaginar um adulto brincando com a locomotiva era patético. Apesar de tudo, ela sorriu vendo-a funcionar.

“Que barulho é esse?” perguntou Phillip.

“É o apito de uma mini locomotiva.”

A Dr.ᵃ Harper abriu a porta da frente, o primeiro cômodo era uma sala espaçosa cheia de objetos antigos. Uma vitrola no canto da sala roubou a atenção, possuía uma corneta metálica em tom dourado.

Na estante do aparelho, vários discos empilhados. Mesmo sem conhecer nenhum, ela tirou um dos discos e colocou no aparelho. Após ligado, ele começou a girar, produziu música quando colocou a agulha no disco.

“O que foi agora?” perguntou Phillip.

“Na capa diz que é Blues, gostaria de entender essa fascinação pelo passado que ele tinha.”

“Em uma pesquisa prévia, a suspeita dessa fascinação vem do fato de o Dr. Sigmund Freud ter vivido o século XIX e XX.” disse Phillip.

Enquanto a música tocava, Harper andava pela casa. Aquela era uma experiência incomum, parecia como voltar no tempo. Talvez o ambiente mais revelador seria no escritório pessoal dele.

Na sala onde Julian trabalhava, mesas, cadeiras e estantes cheias de livros. O que mais perturbava, era a ausência de robôs na casa. Até parecia que não gostava da presença deles, pela limpeza e pelo cuidado, a Dr.ᵃ sabia que algum era responsável por colocar tudo em ordem, mas não avistou nenhum.

“Mais alguma informação?” perguntou Harper.

“Não, a discussão entre eles se resume a Ethan defendendo a exatidão da programação com foco na eficiência, enquanto Julian defende a virtude e versatilidade. O que mais me chamou a atenção foram os pontos em que Ethan adverte sobre a periculosidade das máquinas, tendo que lidar com procedimentos morais e éticos. Ele não sabia qual seria o resultado.”

“Essas argumentações tiveram respostas?” perguntou Harper.

“Julian dizia que não seria diferente de confiar em uma pessoa na mesma função.”

Tantas perguntas sem respostas, a Dr.ᵃ decidiu explorar a área de trabalho. Começou pelos materiais sobre a mesa, folhas com rabiscos e desenhos feitos à mão. Talvez fossem protótipos de algum projeto novo.

O fascínio por psicologia era nítido, a maioria dos livros era sobre o tema. Um livro em especial chamou sua atenção, ele estava em um canto separado da mesa.

Além do Princípio do Prazer, Sigmund Freud leu Harper na capa. Folheando as páginas, encontrou dezenas de anotações feitas por Julian. Grifos, escritas e marcações coloridas, olhava mais para as anotações que ao próprio livro.

Uma página dobrada explicava sobre Thanatos, a pulsão de morte. Harper encontrou, nas palavras do livro, ligações entre a pulsão e o retorno ao estado inorgânico. Uma busca que terminaria quando a matéria regressa à natureza.

Em uma das anotações estava escrito: dia 15 de outubro, um ciclo inevitável. Por um instante, a Dr.ᵃ Harper pensou em possíveis consequências da implementação de um sistema desse nas máquinas. Afinal, todos os seres humanos na Terra voltaram para seu estado inorgânico.

Pensando que isso seria loucura, descartou a possibilidade. Sem chegar a uma conclusão, ela deu a busca daquele dia como encerrada.

“Phillip, encontrou alguma pista?”

“Não, nada. O debate entre eles fica estagnado no campo teórico com ar difamatório. Às vezes parecem crianças. E você? Encontrou alguma coisa?”

“Uma linda locomotiva e uma teoria perturbadora”

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